segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Do que fomos fazendo

Vem este tema à baila por estar prevista para breve a edição de um livro de poesia da autoria de António Vicente, membro da Toada Coimbrã. João Paulo Sousa editou em 2002 a monografia a seguir mencionada que mereceu do Dr. António Manuel Nunes o seguinte texto publicado em http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/04/infantuna-o-dr.html


O Dr. João Paulo Sousa, advogado na Comarca de Viseu, estudou Direito na UC na 2ª metade da década de 1980 e foi sócio da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra. Nessa agremiação integrou a Estudantina Universitária de Coimbra (EUC, fundada em 1985), como executante de Guitarra de Coimbra, e o grupo de Canção de Coimbra TOADA COIMBRÃ, na qualidade de 2º guitarra. Enquanto membro da EUC, João Paulo Sousa participou em incontáveis actuações em Coimbra, Portugal regional e estrangeiro. Com a EUC, na qualidade de executante de Guitarra de Coimbra, gravou os LPs "Estudantina Passa" (1988) e "Canto da Noite" (1991).
A primeira tuna académico-juvenil pós 25 de Abril apareceu no decurso de 1983, em Vila Real, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Todavia esta agremiação pautou-se por uma existência discreta: repertório popular (em todo o caso lançaram a "Mulher Gorda"), calmosas presenças em palco, Capa Mirandesa utilizada sem impacto visual mobilizador.
A Estudantina de Coimbra originou um inusitado fenómeno de tunomania que contagiou, a nível local, os públicos dos saraus académicos, estações de rádio e festivais musicais da Queima das Fitas. Na 2ª metade da década de 80 as modas da Estudantina eram furiosamente assobiadas nas ruas de Coimbra por estudantes e populares. Em palco ou em arruada, os estudantinos tudo arrebatavam com as suas cantorias, brejeirices, cantos goliardos, piropos e excessos à normalidade de todos os dias.
A tunomania rapidamente alastrou a todas as localidades onde funcionavam jovens universidades públicas, universidades particulares e toda a sorte de institutos superiores públicos e privados. A febre foi de tal ordem, particularmente na década de 1990, que por vezes não se sabia ao certo quem era quem, tanto mais que algumas tunas dos politécnicos se apresentavam como sendo "universitárias". Letras simples, entre o romântico e o brejeiro, melodias dançáveis e facilmente trauteáveis, inclusão de canções populares, faziam da Estudantina de Coimbra um grupo irresistível. O cavaquinho, o tambor, os bandolins e o acordeon conferiam-lhe um certo ar de arraial popular próximo das tradicionais chulas nortenhas e grupinhos de sol-e-dó. O frenético tamborilanço das pandeiretas, o bamboleio do burlesco estandarte, os gritos de incitamento à folia, a báquica euforia, as piadas do público, as capas atiradas ao ar ou atapetando os chãos, tudo parecia contribuir para contagiar os públicos mais renitentes.
Em ambientes portugueses menos familiarizados com os costumes estudantis, os membros da primeira geração da Estudantina eram vistos como um bando de perigosos e extravagantes arruaceiros toldados pelos aromas dionisíacos. Estudantes da Universidade de Coimbra ou bando de "bárbaros" saídos da província para tormento do pacato e desconfiado burguês, eis a perplexidade frequente. Quando a cantoria de rua puxava à recolha de donativos para a sopa bem regada dos tunantes, lá chovia o faltal "vão mas é trabalhar malandros!"
Para o sucesso da Estudantina de Coimbra contribuiu em primeira mão o estudante de Direito António Vicente, com o seu visual cinematográfico à Errol Flynn, que apostou na produção de um repertório ligeiro, recheado de sucessos que iam da balada romântica, às sentimentais modas de serenata e às canções posicionadas na esteira das gravações do Conjunto António Mafra.
Por todo o país se cantaram temas divulgados nas digressões da Estudantina como o burlesco "Afonso" (de alguma forma uma actualização das aventuras do João Fernandes do "Palito Métrico"), a "Rapariga" e o "À Meia Noite ao Luar". Em 1988 a Estudantina gravou o seu 1º disco vinil, o LP "Estudantina Passa". O disco vendeu fartamente em 1989 e foi tocado nas feiras, arraiais e nas rádios regionais. O dinheiro das vendas garantiu mesmo à Secção de Fado da AAC folgança financeira. As letras da Estudantina, com os tons do acompanhamento escritos por cima dos versos, foram entoados em festas de Natal de professores, jantaradas de cursos e convívios informais juvenis.A 2ª metade da década de 1980 foi o tempo da emergência das tunas estudantis, um pouco por todo o Portugal continental e insular. Foram os anos optimistas do licenciamento de cursos pela mão do Ministro da Educação Roberto Carneiro. Fenómeno algo semelhante tinha ocorrido na Universidade de Coimbra, liceus e politécnicas pelas décadas de 1880-1890. Mas as proliferantes tunas estudantis da década de 1980 distinguiam-se das suas congéneres do passado:
-adoptando o visual erecto, de tipo arruada, afastavam-se do modelo clássico da tuna sentada com ar muito sério e composto, capa descaída pelos ombros, com estante e partitura à frente (na tuna clássica os executantes de contrabaixo podiam ficar de pé, na fila traseira do palco);
-em termos de repertório, optando pelos temas de tipo arraial, distanciavam-se das peças dos compositores ditos clássicos;
-o figurino escolhido a nível dos trajos e da teatralização de palco já não era o da tuna da época clássica. Proliferou a imagem da tuna erecta, directamente inspirada nas arruadas tunantes portuguesas e nos desfiles à espanhola. Os elementos das tunas erectas executavam passos de dança simples, alinhando em meio-círculo, descrevendo oitos e círculos, avançando e recuando em ondas, com os pandeiretas em acrobacias e o porta estandarte em agitação frenética.
Em certos casos, os trajos como que remetiam directamente para vestimentas envergadas pelas tunas espanholas desde meados do século XIX. De início, o fenómeno tunante ficou marcado pela produção de imagens afirmativas do monopólio da masculinidade. No entanto, a constante emergência de tunas veio abrir campo a formações exclusivamente femininas e ainda a outras mistas (fenómeno mais incisivo a sul do Mondego).
No caso de Coimbra, imperou a Capa e Batina de modelo masculino herdada do período da 1ª República. Os estudantinos apresentavam-se com a Capa traçada "à estudantina", exibindo o forro repleto de emblemas polícromos. Tamanha garridice, aliada aos fitilhos pendentes dos cordofones, conferia ao conjunto um ar festivo. Em Coimbra não se registou nenhuma invenção do trajo. Apenas foram permitidas liberalidades cromáticas. Em todo o caso não se recuperou o laçarote de ombros, estilo menino de comunhão solene, outrora exibido pelas tunas estudantis (permanece na Tuna do Liceu de Évora).
Relativamente aos estabelecimentos de ensino superior nortenhos, excluindo Braga/Guimarães (reino do Tricórnio desde 1989) e Vila Real (Capa Mirandesa), a reorganização da Tuna Universitária do Porto em 1987 ditou o figurino em termos de visual e de repertório. A TUP, revigorada como agremiação masculina, propunha a capa dobrada no ombro, tipo avental ou capa à toureador com a bainha sobre o ventre, repleta de emblemas (esta forma de dobrar a Capa não ocorre no Centro nem no Sul, mas a parafrenália de emblemas, fitilhos e crachás é idêntica), vozes masculinas vigorosas, compromisso entre a tocata clássica (contrabaixo), instrumentos de arraial e um repertório eclético onde pontuavam temas como "Amores de Estudante" (tango), "Adios Coruña", "A Luz", "Cielito Tuno", o meladíssimo "Ondas do Douro", a "Marcha Turca", a "Lezíria Verde", a versão Vitorino de "Menina que estás à Janela" e a burlesca "Capuchinho Vermelho" (Carlos Paião).
O fenómeno das tunas, contemporâneo da massificação do ensino superior português, mobilizou desde cedo as atenções da indústria dos bens de entretenimento, lembrando de alguma forma os dispositivos bem conhecidos e testados na esfera de acção dos ranchos folclóricos: organização de festivais de tunas, alojamento, gravação e comercialização de discos, gestão de convites para actuações, transportes, alimentação, palcos, material sonoro, impressão de programas, divulgação de notícias relativas a eventos tunantes, encomenda de trajos distintos do modelo clássico da Capa e Batina, constituição de júris, encomenda e atribuição de troféus.
Em finais de 1991 ermergiu em Viseu a Infantuna, cujo patrono é o Infante D. Henrique. Sobre as peripécies ligadas às origens da Infantuna, com passagem pela remota Tuna do Liceu de Viseu, ensaios, trajo, repertório, digressões, patrocínios locais, afectos, escreve o Dr. João Paulo Sousa, também ele fundador e membro daquele organismo.
O fenómeno das tunas estudantis, autêntica explosão vivida nas décadas de 1980-1990, apaixonadamente aplaudido pelos seus mais directos agentes e produtores, vituperiado por outros que nele acusam a consumação última da arte pela arte, não deixa de constituir um fenómeno sociológico merecedor de atenção.
Quanto a tunas clássicas existentes na década de 1980, são conhecidas:
1 - TAUC: Tuna Académica da Universidade de Coimbra, oficialmente fundada em 1888, mas resultado directo de experiências espontâneas multisseculares, com um crescendo de "bandolinatas" e "estudantinas" registado a partir da fundação da orquestra do Teatro Académico em finais da década de 1830. Pode dizer-se que a demolição do Teatro Académico nos finais da década de 1880 e a correlativa desarticulação da sua orquestra foram determinantes na formalização da TAUC em 1888. Outra motivação de peso foi a euforia gerada pela visita da Estudantina de Santiago de Compostela, contágio que logo alastrou aos liceus e academias polictécnicas;
2 - TUP: Tuna Universitária do Porto, integrada no Orfeon da Universidade do Porto desde a década de 1920. Não se sabe ao certo qual a data rigorosa da fundação deste agrupamento. Os dados disponíveis referem que a TUP é anterior à fundação da própria Universidade do Porto, pois resultou da continuidade da Tuna Académica do Porto, activa pelo menos desde 1890 (liceu, politécnica, Escola Médica);
3 - Tuna do Liceu de Évora, a única sobrevivente dentre as múltiplas formações liceais (por estudar), usando Capa e Batina com laçarote verde no braço, fundada em 1901;
4 - Tuna da Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade do Porto, fundada em 1977, com visual e repertório clássicos;
5 - Antigos Tunos da Universidade de Coimbra, grupo misto, constituído em 1985, de acordo com a solução clássica sentada e repertório ecléctico em voga entre as décadas de 1920-1970.
Quanto ao surgimento de novas agremiações tunantes desde a década de 1980, sem preocupações de exaustividade, sabido que o grande boom instituinte se verificou na década de 1990:
-Tuna Académica da UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real), agremiação mista fundada em 1983. Usava como elemento distintivo a Capa de Honras transmontana da região de Miranda do Douro;
-Estudantina Universitária de Coimbra (EUC), grupo masculino, com uso da Capa e Batina, repertório eclético, figurino tipo pasa-calle, fundada em 1985;
-FAN-Farra Académica de Coimbra, grupo masculino, trajando Capa e Batina. A fundação remonta a 1987;
-Tuna da Universidade Internacional de Lisboa, fundada em 1988;
-TEUP, Tuna Académica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, fundada em 1988, influenciada pelo modelo espanhol;
-MOÇOILAS, Tuna Feminina da Associação Académica da Universidade da Beira Interior, com trajo próprio, fundada em 1989;
-Tuna Feminina do Orfeão Universitário do Porto, fundada em 1989;
-Tuna Orquestra Académica Já B'UBI & TokusKopus, grupo masculino da Universidade da Beira Interior, Covilhã, fundado em 1989;
-Tuna Académica da Universidade Portucalense, Porto, fundada em 1990;
-Tuna Académica da Universidade de Évora (TAUE), fundada em 1990;
-Tuna da Universidade Católica Portuguesa, Porto, fundada em 1990;
-TAISCTE, Tuna Académica do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa, formada em 1990;
-Tuna Universitária do Minho, da Universidade do Minho, Braga, grupo masculino fundado em 1990. Usa o Tricórnio com adaptações;
-VERSUS TUNA, Tuna Académica da Universidade do Algarve, criada em 1991, usa trajo próprio;
-Tuna de Medicina da Universidade do Porto, fundada em 1991;
-INFANTUNA, Viseu, 1991, juntando alunos de diferentes estabelecimentos de ensino superior;
-AZEITUNA, Tuna de Ciências da Universidade do Minho, fundada em 1992, usa o Tricórnio com ligeiras adaptações.
Principais festivais de tunas relativos ao período 1985-1995:
-FITU Cidade do Porto, lançado em 1987 pelo Orfeon Universitário do Porto;
-Sete Colinas. Certame Internacional de Tunas, organizado desde 1988 pela Tuna da Universidade Internacional de Lisboa;
-FITU Bracara Augusta, lançado em 1990 pela Associação Recreativa e Cultural da Universidade do Minho (ARCUM);
-Festival Internacional de Tunas do Instituto Superior Técnico, Lisboa, organizado desde 1993 pela TUIST.

Para saber mais, com uma palavra de agradecimento à gentil oferta do autor: João Paulo Sousa, "10 anos de Infantuna. Contributo para a memória de um fenómeno", Viseu, Palimage, 2002; revista "Tradições Académicas. Forum Estudante", 1996; portal «www.portugaltunas.com». A versão original deste texto sofreu melhorias resultantes da troca de informações com o Dr. João Caramalho Domingues. Em todo o caso, não se trata de um historial das tunas estudantis portuguesas conhecidas na década de 1980 mas unicamente de uma legenda que pretende contextualizar e apresentar ao público do Blog o livro relativo à INFANTUNA.


AMNunes

2 comentários:

Anónimo disse...

Quanto às datas de fundação das tunas citadas - e mesmo descontando alguma despreocupação na exaustividade - existem alguns erros nas mesmas e, por outro lado, faltam mencionar algumas Tunas mais antigas na sua fundação do que as mencionadas. São igualmente citadas datas de fundação de tunas que começam com formação mista e só mais tarde assumem a sua condição de Tuna de facto, sendo que neste particular e a considerar datas de fundação como tunas mistas faltarão seguramente várias a essa listagem e que são anteriores. A FanFarra de Coimbra como Tuna somente inicia a sua actividade em 1991 e não em 1987 como é citado acima (fundada em 1987 era um dos organismos músicais dos FANS - Falange de Apoio Negro - claque universitária da Associação Académica de Coimbra/Organismo Autónomo de Futebol (AAC/OAF).

OMEGA disse...

Meu caro:
O texto é da exclusiva responsabilidade do Dr. António Manuel Nunes, em que não quisemos mexer. Sempre terá pelo menos o mérito de, não sendo o seu autor um "interno" do mester das Tunas, demonstrar alguma curiosidade pelo fenómeno. À data do texto poucas sistematizações históricas teriam ainda sido feitas, pois como sabemos só agora estão a ser vistas com a devida atenção.

Mas comentários como os seus são sempre benvindos. Apareça mais vezes...